A arte que liberta
- Daniel S. Santos

- 6 de ago.
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“A arte nos liberta da realidade atroz”, eu vim pensando enquanto descia a rua. Contemplava com profunda melancolia a sordidez da ruazinha de casas baixas. Virei uma esquina, contornei uma pequena praça e abri o portãozinho que fez um ruído estridente e áspero. Entrei pelo alpendre, atravessei a sala e fui pelo corredor. Cheguei ao jardim interno e sentei-me sob a pequena árvore de galhos retorcidos. Fiquei pensando nessa questão da arte, de como, supostamente, ela pode nos elevar deste mundo sórdido.
De repente, sentado sob os galhos retorcidos, me vi do outro lado do jardim sob um outro arbusto, com espessas folhas, me observando sob a pequena árvore; a minha figura do outro lado dos canteiros tinha os olhos mais atentos às minhas dores, mais sábios, mais artísticos. Numa janela atrás de mim, um vulto parecia saber no que eu e o outro estávamos pensando.
Depois de um longo aleamento finalmente me despertei, por assim dizer, daquele devaneio insano e profundamente artístico.
Entrei na casa e fui pelo corredor, atravessei a sala e sai para o alpendre. Abri o portãozinho que fez um ruído estridente e áspero como que repetindo a mesma cena de um filme, só que agora em sentido inverso.
Contornei a praça, virei a esquina e subi a ruazinha sórdida de casas baixas; “a arte nos liberta da realidade atroz”, eu fui pensando.
Estou na janela que dá para o jardim. O pequeno jardim que fica na parte interna da casa. Os pequenos arbustos estão floridos e recendem a fragrância das folhas depois da chuva; um suave perfume que se espalha e inunda o quarto onde estou. “É uma bela prisão esta que encontrei, eu penso. Afinal, todos temos que escolher uma; é melhor que estejamos relativamente satisfeitos com a prisão que escolhemos.”, eu pensei. O dia todo o meu pensamento é como um labirinto. À noite os meus sonhos circulares me envolvem. De modo que este relato é feito de infinitas repetições; desenhos circinados na casca seca do tempo.
Depois de um breve passeio pelas ruas volto e vou direto para o jardim, sento-me e fico pensando em coisas que se repetem. Levanto-me. No corredor a minha mente está embotada e eu consigo apenas um vislumbre das imagens circulares que me vinham com naturalidade; sou um bloco impenetrável de confusão dolorida.
Eu não sei o que seria de mim sem a sensação de estar no jardim sob o arbusto pensando em coisas que se repetem, ou, sem passar no corredor envolvido em frases como se elas fossem linhas numa agulha e me costurassem como um tecido feito de emoção e sentimento. Eu leio sempre o mesmo livro, eu escrevo sempre o mesmo conto; é como uma reza ou um hábito que acalma. De repente eu me vejo sob o arbusto no jardim; profundamente filosófico, profundamente repetitivo. Estou sob o arbusto pensando nas janelas voltadas para o jardim. Cada uma delas emoldura um rosto que pensa coisas que se repetem; frases que dão voltas e retornam a uma mente dentro do invólucro oco de uma carapaça.
Fiquei na janela observando os dois personagens sentados sob os arbustos pensando, depois entrei pelo corredor, passei pela sala, atravessei o alpendre, abri o portãozinho estridente e áspero e saí para a rua.
“A arte nos liberta da realidade atroz”, eu fui pensando.