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O plano

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 24 de set.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 28 de set.

Estávamos descendo a estradinha do morro das orquídeas. Uns fiapos de nuvens surgiam de repente sobre as nossas cabeças, faziam um rodopio na volta do vento e escorriam lá para baixo deslizando sobre a parede da encosta deixando um rastro quase imperceptível da sua passagem; dissolviam-se nas nuvens mais espessas que se acumulavam sobre a paisagem recompondo as figuras delirantes que iam surgindo dentro da névoa.

“Hei, olha aquilo...”, eu ouvi alguém gritar bem perto de mim. Eu olhei e vi que o magrelo que acabara de gritar apontava o dedo lá para baixo; na base da estrada um pontinho negro começava a se deslocar na nossa direção. Eu fiquei aguardando. Alguém se afastou e começou a arrancar algumas folhas secas de uma árvore raquítica que se equilibrava na beira do pequeno abismo. Confesso que me deu uma vontade irresistível de jogar o arrancador de folhas ribanceira abaixo mas eu não encontrava nenhum motivo plausível para tomar essa atitude; “andar de um lado para o outro em volta de Serra Negra pisando a poeira espessa das suas estradinhas vicinais sem autorização das autoridades para entrar na cidade não é motivo suficiente para eu começar a eliminar os comparsas”, eu pensei.

“É preciso suportar a ineficácia desses patifes”, eu pensei. Lembro-me do tempo que passei lá no Galpão quando tomei a decisão de recrutar esses crápulas consumados para me auxiliar na tomada da cidade; lá no fundo eu sabia que estava cometendo um equívoco e que nenhum deles tinha a menor capacidade de me ajudar em alguma coisa, muito menos na complicada tarefa de assumir o controle da cidade. Mas eu já havia planejado tudo e quando saí em liberdade percorri os arrabaldes colando pequenos cartazes nos postes de iluminação, divulgando a notícia de que eu estava formando um pequeno exército de canalhas para invadir Serra Negra; é surpreendente como isto desperta o interesse ávido da pior espécie de gente; no outro dia havia uma fila de candidatos na frente da casinha que eu havia alugado para funcionar como a sede da revolta e fazer as entrevistas. Fechei a porta do escritório, sentei-me atrás da mesa e fui mandando entrar os aspirantes.


Mas isso agora não vem ao caso.

Agora estamos descendo a estradinha do morro das orquídeas. Eu tô indo na frente e meu exercito vem atrás; “dessa vez vamos entrar em Serra Negra”, eu penso, mas antes de chegarmos na porta da cidade muita coisa vai acontecer, eu pensei e mal eu tinha acabado de pensar depois de uma curva avistei uma construção encrustada numa fenda de encosta. Era uma estrutura de pedra com uma fachada repleta de pequenas janelinhas por onde entrava um fio de ar quente que os prisioneiros respiravam.

Olhei novamente e na parte mais alta eu vi cabeças muito vermelhas com bocas escancaradas tentando emitir um grito que não saía. Uma sentinela abriu o portão principal e veio caminhando na minha direção; à meia distância anda gritou: “alto aí, vocês são os novos prisioneiros?” “Não somos prisioneiros coisa nenhuma”, eu disse com arrogância, “vamos entrar em Serra Negra e tomar a cidade”, concluí sob o olhar estarrecido do guarda. No meio do entrevero os comparsas que vinham atrás de mim foram chegando. Para minha surpresa um grandalhão meio aparvalhado que estava no meio do bando se adiantou e foi falando enquanto apontava o dedo na minha direção: “sim ele é o prisioneiro Sr. policial. Pode levá-lo nós o escoltamos até aqui.”

A sentinela se adiantou, colocou as algemas nos meus punhos e me levou lá para dentro. Os comparsas ficaram me olhando desaparecer na imensa porta envidraçada, satisfeitos por terem cumprido a missão que lhes fora confiada..

Fui arrastado por corredores obscuros interligados por escadas em espiral. Um cheiro forte de folhas apodrecidas infestava o ar. A sentinela escolheu uma cela aleatória e me jogou lá dentro. Corri pra janelinha que havia num canto e olhei lá fora; umas nuvens muito densas rodopiavam na onda do vento e desapareciam por trás da construção desobstruindo a imagem dos meus comparsas lá embaixo; reunidos num semicírculo confabulavam algum plano, se é que isso era possível às suas mentes estropiadas.

Deitei-me e adormeci. No sonho eu vinha andando por uma estrada. Dava passos ágeis tentando fugir de alguém que me perseguia, os meus pés se afundavam na poeira do chão. Na parte mais alta do terreno olhei para trás e vi o rosto do meu perseguidor, a sua cabeça se aproximou rapidamente de onde eu estava como às vezes acontece nos sonhos; ficou bem do meu lado fazendo umas caretas insuportáveis como se quisesse tirar o meu foco de atenção do plano que eu estava elaborando. Andei por um tempo dilatado até encontrar uma torre repleta de pequenas janelas onde se dependuravam enormes olhos atentos aos movimentos de quem se aproximava.

Eu fui chegando. Parei diante da porta de entrada. Depois de um breve momento de indecisão eu entrei. Passei por longos corredores, subi escadas em espiral; escolhi uma cela e fui direto para a janelinha, coloquei o meu olho esbugalhado dentro dela e vi a estrada lá embaixo cortada pelo corpo esquálido do viajante que vinha chegando.

Passaram-se muitos dias sem que ninguém aparecesse. Finalmente um homem vestindo um uniforme negro entrou na cela e foi falando: “você ainda não é um prisioneiro”, ele disse, “ainda está em observação. Quem sabe com o tempo se torne um recluso exemplar”, concluiu numa voz esganiçada que chegava a me incomodar, como se pequenas farpas no ar atingissem os meus sentidos com uma certa virulência. Eu não falei nada, fiquei calado olhando através da janelinha uns novelos de nuvens se desmanchando no céu cinza. Quando me virei o homem de uniforme negro havia desaparecido.

Fiquei caminhando de um lado pro outro na cela minúscula esperando que algum pensamento viesse me salvar.

“Hei, o que você acha? Nós vamos conseguir entrar em Serra Negra?” alguém me perguntou lá na estrada. O baixinho com uma cicatriz debaixo do olho esquerdo se desvencilhou do bando que caminhava atrás de mim, encostou bem do meu lado tentando acompanhar os passos longos que eu dava: “Nós vamos conseguir? O que você acha?”, ele perguntou. Eu fiquei calado, continuava dando os passos compridos que eram a minha marca registrada; apenas olhei de rabo de olho para a cicatriz debaixo do olho dele sentido repugnância e asco. Eu só pensei: “Não adianta eu contar o meu plano para ele. Ele jamais vai entender os detalhes ardilosos do meu plano; pequenas e contundentes astúcias que vão imprimindo na cidade as formas que eu havia sonhado, transformando Serra Negra na imagem que havia dentro de mim

É por isso que eu caminhava na frente. Deixava aqueles estúpidos virem atrás de mim sem que pudessem compreender nada do que eu ia pensando.

 
 
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