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Guêthie, o anjo exterminador

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 23 de out.
  • 4 min de leitura

Eu estava na porta do meu prédio dando o último trago no cigarro e olhando os carros que passavam em disparada na direção do rio. As luzes dos faróis me incomodavam ao cortar o ar escuro e denso da noite e espocar dentro dos meus olhos sonolentos. “Que esses carros despenquem lá de cima da ponte e desapareçam no fundo do rio”, eu fiquei pensando, sentindo o gosto amargo do cigarro na minha boca.

Joguei a guimba no chão e pisei nela com o sapato fazendo movimentos circulares com o tornozelo até esmagá-la completamente. “Sempre odiei os fumantes que não fazem isto, mas simplesmente atiram a sua guimba pra qualquer lado ameaçando incendiar o mundo. Embora o mundo mereça esturricar nas chamas até não restar mais nada detesto os fumantes que agem dessa maneira, acho que por uma simples questão estética eu os abomino”, eu fiquei pensando.

Subi os degraus da portaria e o novo vigilante que contrataram me entregou um bilhete. Amassei o papel, enfiei no bolso e subi a escada.

Eu estava exausto e me joguei na cama sem nem mesmo me lembrar de conferir o que estava escrito na mensagem.

No sonho eu tirava a tira de papel do bolso da calça e lia o pequeno texto quase ilegível, pra dizer a verdade, mas que ainda assim consegui desvendar:


“Aguarde-nos. Chegaremos aí amanhã no final da

tarde.”

Acordei e fiquei pensando naquele recado, com uma expressão estúpida grudada no meu rosto até chegar a brilhante decisão de correr para o bolso da calça e apanhar a carta.

Estava escrito:

“Aguarde-nos. Chegaremos aí amanhã no final da tarte.”

“Bem”, eu pensei, “em ambos os casos não sei de quem se trata.” Joguei o bilhete no cesto de lixo; fui fazer algumas coisas que requeriam a minha atenção e me esqueci do assunto.

No outro dia no final da tarde eu estava vendo Cabeças Aberrantes na televisão quando bateram à minha porta. Eram três homens vestidos de preto. O mais alto deles, o que parecia ser o líder, se desgarrou do grupo, atravessou a sala e se sentou na poltrona debaixo da janela; antes olhou lá para baixo na rua e fez um aceno na direção de alguém que supostamente passava na calçada e o conhecia perfeitamente para lhe devolver o aceno. “Ah, sim! Vocês podem se sentar”, eu disse me arrependendo do que havia dito em ironia antes mesmo de pronunciar a última sílaba.

Houve um grande intervalo, pelo que me lembro, finalmente o mais baixinho dos dois que ficaram para trás começou a falar com uma meticulosidade irritante: “viemos te contratar.”

“Me contratar para fazer o quê?”, eu perguntei com certa veemência me recuperando da gafe que eu havia dado quando insinuei uma falsa hospitalidade àqueles estranhos.

“Viemos te contratar para destruir uma cidade”, disse o mais alto deles, o que se sentara no sofá perto da janela. Ficou me olhando como se precisasse de uma resposta urgente enquanto os outros dois arrastavam duas cadeiras para a frente da televisão e começavam a assistir o meu programa favorito cujo episódio eu estava perdendo devido aquela visita desagradável.

“Eu sou especialista em destruir cidades”, eu pensei em dizer num tom carregado de deboche mas me contive “já que o meu estoque de sinismo já foi suficientemente usado hoje”, eu pensei.

Olhei para o tubo de imagem da TV onde a cara enorme do meu personagem predileto de “Cabeças Aberrantes” espocava o seu brilho intenso na superfície da tela. Os dois homens sentados nos banquinhos estavam vidrados nas cenas, os olhos arregalados não piscavam e um riso debiloide grudado no canto da boca denunciava um tipo de telespectador desprezível que não compreende os meandros psicológicos das cenas que está assistindo. “Não sabia que idiotas também gostam do meu programa predileto de televisão”, eu pensei transbordando a minha cota irônica daquele dia.

O homem auto que havia se sentado perto da janela se levantou e veio na minha direção. “Vamos falar sério agora”, ele disse. “É pra fazer a coisa direito. Não pode haver furos”, ele disse pousando a palma da mão esquerda bem no meu ombro direito. “Da outra vez que te contratamos você estragou tudo”, ele completou deslocando a outra mão sobre o ombro que me restara. “Eu não me lembro de ter sido contratado para destruir uma cidade algum dia”, eu fiquei pensando enquanto tentava me livrar daquelas mãos repugnantes.


No outro dia de manhã eu fui descendo a rua na direção do rio e pensando na missão que me parecera um tanto exacerbada para um reles detonador de explosivos baratos. Não sei porque chegaram à conclusão, a meu ver precipitada, de que eu poderia cumprir bem a tarefa de explodir alguma coisa, ainda mais uma cidade.

Atravessei a ponte e fiquei contemplando as expressões vazias dos passantes que iam de um lado para o outro como se procurassem numa das ruas vicinais uma rota de fuga.

No final da tarde o porteiro me interfonou dizendo que acabara de chegar uma encomenda no meu nome.

Desci e peguei o pacote com os explosivos. Armazenei tudo debaixo da cama e abri o mapa sobressalente que me levaria à cidade que eu deveria destruir.

 
 
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