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O contador de estórias sublimes em teatrinhos obscuros

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 8 de jul.
  • 4 min de leitura





Dessa vez me convidaram para ler um conto numa cidadezinha melancólica cravada na corcova de um morro.

Cheguei no crepúsculo, um sol bola vermelha e fria, já se escondia atrás das árvores retorcidas projetando as sombras de folhas secas nas paredes dos sobradinhos dependurados sobre o pequeno abismo.

Há muito tempo eu havia feito a mim mesmo a promessa de jamais voltar a ler contos sublimes para plateias desatentas em teatrinhos obscuros, mas a vida, como nas minhas narrativas de estórias acopladas, trás o passado para ser vivido mais uma vez; tento, em vão, mover uma folha calcinada no ar denso da tarde; um novelo de luz desfia imagens irredutíveis diante da minha perplexidade.

Uma pessoa veio me receber na estação de ônibus para me acompanhar até a pensãozinha supérflua que iria me acomodar.

Coloquei a mala sobre a cama e tentei dar alguns passos no quartinho abarrotado. Cheguei até a janela com alguma dificuldade. Ao abri-la, soprou o vento que deslizara dos musgos e enrodilhou o cômodo como água num remanso; Trouxe consigo o murmúrio do riacho que descia a encosta. Senti o cheiro amargo das raízes e das folhas.

Tirei a mala de cima da cama. Deitei-me e fiquei refletindo nas passagens do conto que eu iria narrar naquela noite. Era o meu modus operandi aperfeiçoado em tantos anos de apresentação nos palcos dos arrabaldes; desfiava na penumbra da minha mente (no pequeno tablado que eu imaginava haver ali) a primeira parte da estória que eu havia confeccionado com o extremo esmero que me é peculiar; deixava que as imagens jorrassem com desenvoltura sem ilustrá-las com palavras desnecessárias e conjecturava sobre o impacto que aquilo poderia causar sobre o público absorvido na sua profunda indiferença.

Na segunda parte eu procedia de maneira inversa; agora eram as palavras que se destacavam sobre um fundo branco desprovido de cenas desnecessárias; isto dava-me a impressão desconcertante de que outros autores assumiam momentaneamente o papel que me cabia refazendo as mesmas estórias que eu havia construído acoplando as idênticas peças no tabuleiro mental que lhes era próprio, mas, dessa vez, de maneira diversa e inesperada, emprestando às narrativas de minha autoria sabores insólitos de um colorido novo e vibrante. ´´Quase nunca compreendemos a nós próprios, vivemos num mundo repleto de confusão e desespero ao qual enfrentamos com as inabilidades das nossas vertigens´´, eu pensei.

Na terceira e última parte do meu projeto de vasculhar com a mente o conto que eu iria ler algo insólito ocorria; era como se um terceiro autor se juntasse ao grupo de trabalho que eu havia imaginado para fazer a última passagem de cena. ´´Isto dará aos ouvintes momentos de elevação´´, eu pensava com certa melancolia, sabendo, lá no fundo, que isto não iria acontecer e que plateias desatentas jamais poderiam focar um olhar profundo nas estórias que eu contava; estavam ali em busca de algum anestésico momentâneo para suas vidas torturadas, nada mais.

Depois dessa inusitada tarefa de passar a limpo o conto eu me sentia seguro para me colocar diante do público e destrinchar com precisão a enroscada estória que eu e meus auxiliares, os outros eus, artistas do devaneio, havíamos preparado com tanto rigor.

Finalmente chegou a hora de sair pelas ruas da cidadezinha para me distrair um pouco como eu sempre faço antes das apresentações, embora nunca tenha sido possível espairecer, a lembrança do que eu iria narrar dali há algumas horas tornava tudo pesado como uma chuva de chumbo encharcando a paisagem.

Pelas calçadas eu via rostos turvos e nebulosos mais trágicos do que qualquer trágico personagem meu, o que me fazia conjecturar da necessidade da arte, e se não seria melhor colher no próprio sumo da vida as nossas reflexões e angústias.

Virei uma esquina; uma cabeça muito grande e achatada veio na minha direção, o que me lembrava rapidamente uma cena da minha série de narrativas de ´´Os cabeças Bojudas.´´

Entrei por uma praça, contornei um chafarizinho de águas turvas, olhou-me com profunda melancolia dois olhos ávidos que expressavam dores indizíveis; lembrou-me Narciso no fundo do pequeno lago do Jardim de Satã.

Finalmente, eu, tornando-me um personagem que deixa a sua mala no hotel e sai caminhando pela cidadezinha me recordou de forma intensa “Os anjos de Iahweh”, um dos meus célebres contos referentes ao tema do anjo exterminador.

No meu breve passeio foram se misturando ficção e realidade e no meio das sombras das ruas onde eu pisava e as vibrantes imagens que vinham a minha mente eu já não sabia distinguir uma coisa da outra.


Voltei ao hotel extenuado esperando que um bom banho de chuveiro aliviasse minhas apreensões. Vesti-me e saí para a minha apresentação.

Uma enorme lua derramava uma luz leitosa sobre a cidade vazia. Contornei algumas esquinas; lá no fundo surgiu a luz coruscante riscando a pedra da calçada: ´´TEATRO DOS INDIFERENTES´´ Ao aproximar-me vi a minha cara estupidamente atordoada colada no cartaz: ´´HOJE, O CONTADOR DE ESTÓRIAS SUBLIMES EM TEATRIMHOS OBSCUROS.´´

 
 
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