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A cidade dos abutres

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 11 de out. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 12 de out. de 2024



Havia uma cidadezinha plantada num pequeno oásis do deserto de Harat.

Karfmaim, um comerciante de tecidos da mais pura seda, num dia em que o clima tórrido tornou-se mais ameno, contrariando o seu peculiar modo de vida anunciou a Androvini, seu auxiliar na loja, que sairia em busca de outros desertos e oásis. ´´Antes de morrer tenho que saber o que há no mundo´´, ele disse olhando fixamente a minúscula janelinha recortada no fundo da loja. Androvini deslocou o olhar na mesma direção e viu um pequenino fio de areia escorrer no fundo do horizonte recortado por um azul cintilante onde começavam a brotar as primeiras estrelas.

´´Como se a vida já não fosse um deserto, e um deserto não bastasse aos dias conturbados da vida de um homem´´ refletia consigo mesmo Androvini, arguto adepto da filosofia profunda.

No outro dia, já no seu posto atrás do balcão, munido dos apetrechos necessários ao seu ofício, Androvini, como numa cena que se repete num filme, contemplou através da minúscula janelinha, dessa vez aderindo ao fio de areia que escorria viu o patrão montado em seu camelo partir com a pequena comitiva em busca do desconhecido.

´´Certamente algum antepassado viajante soprou na sua mente a ideia de explorar as cidadezinha de aspectos e costumes inéditos para suas recordações e deleites quando a idade avançada o alcançar´´, pensou Androvini enquanto cortava um pedaço de seda para uma cliente que aguardava.


Depois de muitos dias de viagem sobre a areia escaldante e a monotonia da paisagem Karfmaim sobre a corcova do seu camelo viu surgir ao longe as folhas de uns coqueiros sacudidas pelo vento.

Quando a pequena caravana foi se aproximando atrás da ondulação das folhas a imagem das torres foram surgindo sobre o ar quente da tarde como quando se revela uma fotografia no ácido de uma câmara escura.

Na entrada da cidade um lago deslumbrante refletia os últimos raios de sol. Uma ponte ligava as duas margens. As águas escorriam calmamente como um rio que passa esquecido do mundo; dois abutres pousados sobre o parapeito observavam.

´´Mais um prisioneiro que chega´´, falou um dos pássaros. ´´Os encarcerados estão felizes com suas celas encrustadas no emaranhado da urbe´´, respondeu a ave do lado, um brilho mais intenso e vivo cobrindo o negror da sua plumagem; os raios dourados do sol de fim de tarde dardejando na couraça da bizarra sentinela espalhavam uma luz sinistra sobre as vigas.

A caravana atravessou a ponte sob o olhar atento dos dois vultos negros. Os camelos, como se pressentissem algo, estacaram sob o pórtico. O forasteiro levantou os olhos e leu no entalhe da pedra:


CIDADE DOS ABUTRES


Veio vindo do fundo opaco da rua uma figura negra que foi crescendo até alcançar o primeiro plano da paisagem: Um grande abutre adornado com medalhas de guerras e batalhas deu os últimos passos desengonçados na direção do viajante: ´´seja bem-vindo”, uma voz esganiçada saía do imenso bico que matraqueava com alguma dificuldade. “Aqui recebemos com extrema delicadeza os nossos prisioneiros. Pode escolher uma cela e se recolher; todos os confortos necessários serão providenciados para a sua estadia´´, o abutre completou.

No outro dia karfmaim olhando pela janela através das grades viu a imensidão do nada e sentiu o gosto amargo da solidão dentro da solidão, do deserto dentro do outro deserto, da prisão dentro da outra prisão.

Toda noite um escriba abutre vinha lhe contar uma estória.

Na primeira noite o bico do asqueroso animal balbuciou à sua maneira peculiar:


“Primeiro havia a areia e sol escaldante. Veio o deus abutre e construiu a primeira torre; trabalhou seis dias e descansou no sétimo: uma infinidade de calabouços adornavam os corredores esplendidos; e o deus abutre viu que isso era bom.”


Na segunda noite outro escriba abutre veio lhe contar:

“Mas as celas eram vazias e assim desocupadas não pareciam fazer o menor sentido. ´´Façam-se os prisioneiros, falou, então, o deus abutre e da imensidão dos areais o desenho de rostos com sorrisos dementes iluminados pelo sol escaldante foram surgindo.”

Na terceira noite outro escriba abutre, na quarta outro, e assim por diante até completarem os dias de prisão de Karfmaim.


A pequena caravana atravessava a ponte sobre o lago. As duas sentinelas abutres observavam a comitiva com alguma condescendência. As águas estavam especialmente límpidas naquele dia. Karfmaim olhou para trás e viu pela última vez as torres se esvaindo como numa miragem.

 
 
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