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A cidade sobre o abismo

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 25 de jan.
  • 4 min de leitura

Numa das minhas viagens por esses vilarejos remotos, durante uma convalescença, adquiri o vício da escrita; atividade absorvente e inútil; “a aranha tece a teia sem esperança de capturar sua presa.”

Depois de contrair tal enfermidade tive que abandonar o hábito de vagar pelo continente insólito e estabelecer uma eficaz rotina de literato de subúrbio.

Passei a construir pequenas vilas de papel e tinta, ainda mais remotas do que aquelas que eu havia percorrido; como um incansável arquiteto da imaginação fui gravando em pequenos relatos a imagem das urbes inusitadas que eu havia visitado.

Alguns desses relatos chegaram até mim através de textos que encontrei em alguma casa abandonada pelo caminho; foram imprescindíveis para eu compor o meu estilo de escrever contos.

Transcrevo aqui o primeiro desses relatos avulsos que encontrei em alguma gaveta de armário estropiado, embaixo de pilhas de livros subalternos ou esquecido no fundo de algum armário entulhado de roupas impregnadas com o cheiro de naftalina:


“A cidade pairava no ar. Era feita de intermináveis tubos transparentes que se entrelaçavam dando acesso a minúsculas celas ocupadas por moradores solitários.

Era uma cidade efêmera feita de pequenos filamentos recolhidos nos desfiladeiros; pendia suspensa sobre o abismo.

Os personagens de rostos opacos, as expressões supérfluas, dependurados dentro dos tubos e casulos que se entrelaçavam iam e vinham nos seus afazeres como pequenos insetos obstinados.

Sou um escritor de narrativas curtas. Ocupo um minúsculo casulo no interior desse labirinto suspenso. Coloquei a minha escrivaninha sob uma pequena abertura por onde corre um vento frio durante as noites. Organizei os meus poucos livros numa pequena estante e ocupei a cama que havia num dos cantos da translúcida construção.

Nas madrugadas fico extasiado contemplando o brilho das pequenas lâmpadas piscando dentro da noite.

Quando amanhece vejo através das transparências os moradores começando os seus afazeres com vagarosa inutilidade. Redijo pequenos relatos sobre esta frágil fortaleza de vidro e seus irrisórios ocupantes, a vida estranha que parece vazar num fio de luz de um tubo a outro.

Nas minhas pesquisas, que tinham por objetivo inicial o mero recolhimento de pequenas cenas para compor a trama das minhas crônicas descobri que a cidade sobre a encosta tinha a precariedade rondando à sua volta. Assolada pelas intempéries, a degradação dos materiais de que era confeccionada, a escassez dos recursos a sua volta; tudo determinava o seu fim precoce. A cidade não parecia ser mais do que um sonho meio apagado numa noite sem luz.


“Apesar da corriqueira monotonia dentro dos tubos e casulos restarão alguns momentos de alegria grafados nos calhamaços com uma letra miúda e torta”, eu fico pensando. “O meu métier é dar vida a cidades de sonhos; gravar a imagem invertida de cada pequena urbe que perece na sua transitoriedade”, eu fiquei pensando.

Mesmo que predominem os fatos maçantes no decorrer do dia ocorrem episódios surpreendentes. A descrição dos personagens que vagueiam sem rumo sob o forte calor dentro dos tubos, o uso da sutileza de escrita; a contemplação dos suaves movimentos de mãos, o modo de um passante enroscar o corpo sobre si mesmo; nuances que compõem uma trágica novela.

Numa tarde, depois do meu trabalho de escrita, entrei por um tubo transparente que se enroscava em outros tubos formando um emaranhado inconcebível. Fui me arrastando como um prisioneiro que se esgueira, executando aqueles movimentos bizarros com certa precariedade e tendo a certeza de que me viam dos casulos adjacentes e que o meu corpo desengonçado certamente provocava crises risos entre os passantes.

Num dia, eu estava meditando sobre algum assunto confuso que eu não conseguia deslindar; ao olhar numa direção vi um rosto parecido com o meu colado à finíssima parede de vidro; uma expressão de desalento, um olhar suplicante refletiu dentro do meu olho bom.

“Não posso fazer nada”, eu disse para o rosto que se refletia nos meus olhos. “São tantos tubos que se enroscam uns nos outros sem que eu saiba, sequer, em que ponto estou’’, eu disse, “eu também sou um prisioneiro”, concluí diante do rosto que se desfazia em sentimentos de profunda angústia dentro dos meus olhos.


Por caminhos tortuosos procurei o casulo onde eu me dedicava ao ofício apócrifo de escritor de narrativas curtas.

Ao chegar sentei-me à escrivaninha e pus-me a escrever.

Alguém conjecturou que a geometria diáfana da cidade existe para o único fim de dar ao escritor farto material de estudo, o que parece plausível; pode confirmar esta hipótese o fato de que apenas as pilhas de calhamaços escritos reste do melancólico fim da cidade suspensa sobre o abismo.

Depois daquele encontro tive o forte persentimento de que eu escrevia as minhas últimas linhas. “Em breve será dado o sinal”, eu pensei. “Os tubos e os casulos serão abandonados numa retirada alucinante”, eu pensei.


Deposito a caneta sobre o caderno e dou uma última olhada em volta; através da transparência me despeço dos rostos devastados pelo pavor.


“Em instantes ouvirei o ribombar dos tambores e a nota triste de um trompete”, eu fico pensando.


Uma luz fina de uma estranha cor vai encobrindo os calhamaços escritos numa letrinha miúda e torta.

 
 
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