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A outra lua

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 22 de abr.
  • 3 min de leitura

Era uma lua muito redonda e clara que vinha brotando por detrás das casinhas raquíticas lá do outro lado da rua.

Eu ia e vinha até a janela com insistência para contemplar o espetáculo. Numa das vezes em que me aproximei do batente da persiana a bola de luz subiu muito alto e desapareceu do meu campo de visão por trás do arcabouço da casa. Agora eu só podia imaginar aquela lua bem acima da minha cabeça despejando sobre as telhas uma luz da cor do leite.


Fiquei ali zanzando sem a lua até que ouvi baterem à porta naquele princípio de noite; “ao que tudo indica eu estou prestes a receber uma visita, acontecimento absolutamente inusitado”, eu pensei. Fui abrir a porta e realmente estava lá de pé do lado de fora da casa um senhor muito comedido, o corpo curvado pela idade e me focando uns olhos compenetrados como se o seu olhar atravessasse a minha mente e compreendesse tudo que eu ia pensando. Pedi que entrasse, indiquei-lhe a poltrona no canto da sala e fui sentar-me à escrivaninha perto da janela de onde eu podia ver o desfile das nuvens recebendo a luz baça da lua escondida em algum lugar. Eu já me preparava para botar a cabeça para o lado de fora e esticar o pescoço, arregalar os olhos lá para cima tentando encontrar la diosa luna quando o velho foi dizendo de chofre que lera todos os meus contos e se fosse do meu interesse tinha algumas considerações a fazer sobre a arte de confeccionar narrativas curtas. Eu não queria contestá-lo nem dar-lhe a entender que eu me considerava um expert no assunto relativo a crônicas curtas e que a opinião de quem quer que fosse sobre o meu ofício me interessava muito pouco. Se eu pudesse eu lhe diria: “O senhor me desculpe, nota-se a capacidade de análise referente a arte de confeccionar estórias curtas que o senhor tem”, eu lhe diria, se pudesse, “mas esse é um assunto que eu não trato com ninguém”, eu lhe diria.

Entretanto a questão essencial era: “eu sabia muito bem que ninguém havia lido jamais uma única linha do que eu havia escrito, portanto trata-se de coisa inconcebível o fato de alguém discorrer com tamanho conhecimento de causa sobre os temas e assuntos dos meus contos, simplesmente pelo fato indubitável deles jamais terem sido lidos.

Ajeitou-se na poltrona e resolveu me dar uma prova do que dizia: narrou com uma voz empostada e elegante dois ou três contos meus sem deixar faltar uma palavra sequer da sequência do enredo.

A princípio fiquei atordoado com o fato de alguém conhecer o que escrevo, mas, me veio à mente os nomes de Poe e Stevenson; “é o tema do duplo”, eu pensei ao lembrar-me dos nomes desses dois.

Levantei-me da cadeira dei uns passos curtos na direção da mesa no centro da sala onde havia alguns livros espalhados. Passava a mão espalmada sobre a têmpora tentando me recompor do susto que eu havia tomado vendo um estranho aparecer de repente na sala da minha casa e narrar alguns contos de minha autoria sabendo perfeitamente que esses contos jamais foram lidos por quem quer que fosse.

“Vejo que você compreendeu muito bem a situação”, ele falou depois de terminar a performance, começar a se levantar da poltrona e, muito lentamente, caminhar na direção da escrivaninha. Sentou-se na cadeira que eu havia abandonado; o rosto esboçando uma expressão curiosa de quem se lembra de um antigo hábito.

Endireitou o corpo usando uns gestos muito semelhantes aos que eu usava me sentando ali, escolheu um dos cadernos e pôs-se a escrever. Exercitou-se com evidente prazer na lapidação de crônicas curtas, ao que me parecia, ofício que obviamente dominava com perfeição. A minha presença não o incomodava. Às vezes eu olhava de esguelha lá da mesa fingindo folhear algum livro e via a sua figura se destacar da luminosidade que penetrava pela janela e recortava o seu corpo arqueado sobre o tampo da escrivaninha; as mãos veementes riscando as palavras que eu tinha a impressão de conhecer tão bem embora estivessem completamente fora do meu campo de visão.

Não sei quantos contos aquele senhor escreveu naquela noite; de repente levantou-se, olhou através do meu corpo como se eu estivesse ausente.

Caminhou até a janela; era uma lua muito redonda e clara que vinha brotando por detrás das casinhas raquíticas lá do outro lado da rua.

 
 
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