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Flores secas em caules calcinados

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 28 de mar.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 1 de abr.

A prisão está em toda parte


Eram várias janelas voltadas para o desolado jardim. Com o rosto colado na folha de vidro de uma delas eu contemplava as flores secas pendendo das hastes; fios calcinados sobre as cinzas do capim.

Mais além, a estrada cavada no vermelho do cascalho enrodilhava a borda do morro com um brilho quase apagado. Um carro se aproximava. O ganglor das engrenagens chegava abafado pelo ar denso da tarde e atingia os meus sentidos com uma vibração de suave fúria.

O carro parou diante de uma das janelas. Um homem desceu, o corpo esguio de uma nervosa agilidade. Olhou ao redor. O sol batendo de chapa no seu rosto revelou os traços da amargura.

O homem saltou por uma das janelas e entrou num dos cubículos.

Do meu quarto eu não podia ouvir nenhum ruído vindo de dentro, só os barulhos vindos de fora.


Passaram-se muitos dias. No jardim as flores secas caíram dos ramos, as pétalas laceradas se tornaram o pó do chão.

Os meus ouvidos lapidados pela lâmina do desespero agora podiam distinguir pequenas lamúrias no interior da construção, ou talvez, vindo de uma das celas, apenas um murmúrio: “Cheguei numa tarde tórrida, as flores secas pendendo das hastes no desolado jardim. Saltei uma das janelas e estendi o meu corpo na áspera pedra do chão”, eu pensei tê-lo ouvido perfeitamente. “Não há passagens entre as celas”, eu lhe disse em murmúrio. “apenas um incômodo silêncio atravessado pelo ruído do motor de um carro que se aproxima”, eu lhe disse em murmúrio, e então pude imaginar o pensamento do enclausurado estender-se pela vastidão da tarde:


“Cheguei, saltei a janela e adormeci sobre a pedra áspera do chão. No outro dia acordei no cômodo vazio e entendi”, ele pensava ainda, o corpo enrodilhado para dentro de si mesmo como um caracol que pensa.

“O murmúrio dos alheados se unem para criar a voz de uma verdade ineficaz, a verdade dos que sofrem e se afogam num mar de agonia”, eu pensei. Caminhei até a janela; (a cela agora surpreendentemente ampla e arejada se dilatara até o infinito) lá fora as ramagens pendiam das abóbadas. Flores vermelhas como sangue explodiam no azul denso da tarde. “Quantos sussurros para dar vida a uma voz vazia?”, eu pensei. O cômodo agora retorna às suas proporções normais. O meu corpo extático, meio inclinado, curvado sobre os ombros. Ao deitar-me vejo a pequena janela à minha frente mostrar a paisagem seca através do fosco do vidro.

Eu sabia que haviam outros prisioneiros. Nas tardes modorrentas, espalhados em cubículos, dentro da enorme construção dividida em minúsculas celas; (uma infinidade delas) os corpos inclinados sobre os próprios ombros, veem através do vidro fosco a linha vermelha ligando o céu de um límpido azul e a terra queimada pelo sol ardente.

Numa tarde, eu estava à janela contemplando a paisagem onde nada acontecia a não ser uma angustia que se insinuava entre os fiapos de uma fumaça ferruginosa deslisando do vazio ao vazio.

Ouvi, ao longe, o ronco de um motor e depois de alguns minutos um carro contornando a estrada. O carro rodeou a pequena fonte do jardim e parou. Um homem desceu, saltou uma das janelas. Ainda pude ouvir os seus passos se apagando dentro da imensa construção e o murmúrio da sua voz se juntando aos outros lamentos; “um coro dissonante que nada diz, um acorde com notas de vertigem e dor”, eu pensei.

Esqueci-me do que ocorria lá fora, os meus pensamentos se enroscando para dentro como um caracol que pensa. Foram surgindo personagens que solicitavam o foco das minhas angústias; vi um rosto que se desfigurava no ar denso ao se aproximar, vi um olho torpe espreitar a agonia voraz dos cubículos.

Finalmente contemplei através da vidraça os primeiros pingos da chuva esverdear o capim.

Ouvi o ronco de um motor, o carro foi chegando e parou sob as flores deslumbrantes que pendiam dos galhos em cascatas. Um homem desceu, escolheu uma das janelas e saltou para a sua prisão.

 
 
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