O temporal
- Daniel S. Santos
- 19 de fev.
- 3 min de leitura
Quando cheguei da rua o temporal já havia começado. “Ela não está em casa, deve ter saído um pouco antes da chuva cair”, eu pensei, “ou, talvez tenha ouvido os meus passos chafurdando na lama e fugido pela porta dos fundos da casa”, eu pensei. Comecei a tirar a roupa encharcada e vestir uma capa de chuva para sair à sua procura.
Atravessei a ponte e entrei na cidade. Fui caminhando debaixo das marquises, uma água suja ia escorrendo no meio-fio e às vezes refletia algum raio de sol que rompia inesperadamente as nuvens densas que passavam lá em cima.
Caminhei apenas alguns minutos e a noite começou a cair sobre as casas e os pequenos sobrados de comércio. Eu tentava avançar dentro da escuridão; ouvia o enxurro escorrendo do meu lado como uma música monótona que não tivesse cor.
Quando cheguei numa das ruas que saía do largo da igreja a chuva cedera completamente, eu podia ver as duas linhas das fachadas estreitas irem se aprofundando até desaparecerem num ponto imaginário lá no fundo.
Escolhi o lado escuro da calçada. Com passos lentos observava as janelas que iam sendo abertas sob a luz dos postes; cabeças se dependuravam entre os portais contemplando com êxtase a água suja escorrendo pela sarjeta.
Do lado da calçada por onde eu ia nenhuma janela se abriu. As portas também se mantinham fechadas. Às vezes um corpo flácido ia do meu lado; eu seguia sentindo aquela presença mórbida por um trecho do caminho sem poder tocá-la.
A rua parecia não ter fim e penetrava numa parte da cidade que eu desconhecia. As janelas do outro lado se fecharam, nenhuma cabeça disforme contemplando o resto de água que ainda escorria pelo meio-fio.
Eu sentia uma dor muito forte no ombro esquerdo e os meus pés latejavam. Eu estava cansado. Machuquei os nós dos dedos de tanto bater inutilmente em portas que jamais se abrem.
Entrei por uma ruazinha sinuosa que rodeava uma pequena pracinha triste com um chafariz que escorria um fiozinho insípido de água verde. Atravessei no meio de um canteiro; as cores amortecidas pela luz baça que se derramava de alguma janela iam se apagando lentamente.
Antes de continuar dei uma última olhada e aquilo me pareceu a imagem exata de outros lugares que percorri naquela noite, “lembro-me perfeitamente de ter visto esse pequeno chafariz jorrar o seu fio de água no meio do jardim esmaecido”, eu pensei. “Talvez o arquiteto que planejou a cidade seja um grande admirador desse tipo de ornamento e o fez se repetir por toda parte”, eu pensei à medida que avançava.
O som da água jorrando entre as pétalas vermelhas ia se extinguindo como cores que se apagam.
Cansado de bater e pedir que abrissem, sem obter resposta, resolvi arrombar uma porta. Escolhi uma e entrei. Não havia ninguém. Nenhum móvel estorvava os meus movimentos. Fui tateando no escuro até encontrar um lampião e acendê-lo.
A pequena chama iluminou um minúsculo cômodo de paredes descascadas. Uma janelinha rente ao teto mostrava uma nuvem distante quase sumida dentro da noite escura.
Deitei-me no cimento frio e adormeci. Sonhei que procurava uma mulher pelas ruas de uma cidade vazia onde pequenos chafarizes enfeitavam pracinhas secas castigadas pelo vento; uma água verde jorrava sobre as pétalas de cores esmaecidas.
No outro dia eu trouxe para dentro do cômodo uma cadeira e uma mesinha para que eu pudesse escrever durante as manhãs. Depois trouxe um tapete em motivos florais que coloquei no centro do cômodo. E por último alguns livros que dispus sobre uma pequena estante que improvisara.
Os dias foram passando. Eu já havia me esquecido de muita coisa que ficara para trás, especialmente o motivo de ter vindo parar aqui nessa parte da cidade que eu desconhecia; com os seus ornamentos que se repetem e me fazem pensar que estou caminhando em círculos por ruas que se repetem.
Ontem caiu um temporal. De uma forma inesperada tudo ficou escuro como num certo fim de tarde que eu me lembrava vagamente.
Ouvi uma batida na porta e fui abrir. Uma mulher enorme estava do lado de fora. Tive que abrir as duas folhas da porta para que ela coubesse no vão. O vento derrubou alguns objetos que haviam em cima da mesa e uma rajada de chuva molhou o tapete estendido no meio do cômodo. A mulher estava com a roupa encharcada e entrou se espremendo entre os portais.
“A tempestade me trouxe. Eu tinha que entrar em algum lugar. De todas as portas deste lado da rua esta foi a única que se abriu”, ela foi dizendo, ofegante, enquanto tirava a roupa sem nenhum pudor.
Eu lhe trouxe uma toalha e ela foi enxugando o imenso corpo. As gotículas deslizando na ondulação das suas formas criavam tortuosas estrias que brilhavam sob a luz do lampião.