A cidade sobre o charco
- Daniel S. Santos

- 27 de nov. de 2024
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O charco era imprestável. Ninguém se dispunha a drenar a sua água podre. Na parte alta da paisagem passava uma estrada. Alguns viajantes em seus carros esculhambados iam na direção de algum lugar. Não se sabe porque, às vezes, o movimento era intenso, e num desses dias, numa tarde em que o sol ia caindo, as suas luzes vermelhas colorindo as hastes do capim que rompia o lodo, um enorme rosto plainou sobre as águas do pântano; uns olhos tristes e um sorriso acolhedor eram como uma pintura feita de névoa e luz. Os que iam pela estrada, quando chegavam em seus destinos iam espalhando a notícia da misteriosa aparição.
Passaram-se alguns dias. Uma escória foi chegando. Os carros arrastando bugigangas imprestáveis foram ocupando a beira da estrada. A despeito da inconsistência do terreno foram construindo nos barrancos e pequenos morros as suas casas improváveis. O que pudesse flutuar era colocado sobre o lodo servindo de base para uma efêmera arquitetura; essa primeira base dando uma aparência de solidez servia de plataforma para o piso que vinha acima, esse a outro e depois a outro até se esquecerem por completo que estavam edificando sobre o lodo; verdadeiras torres foram se equilibrando sobre a precariedade do limbo. Centenas de cubículos adornados por minúsculas janelinhas, de onde caras magras e disformes, quando o sol se punha, tentavam ver na linha do horizonte um enorme rosto triste exibindo um sorriso acolhedor. O rosto nunca mais apareceu.
Passaram-se muitos anos e ninguém mais se lembrava do motivo de terem vindo.
Eu cheguei quando a estória da aparição já havia sido esquecida e não encontrava uma explicação plausível para a construção de uma cidade sobre o charco. Me parecia evidente a insensatez daquilo tudo.
Sem perceber que por trás da obra ensandecida havia uma insensatez ainda maior eu contemplava o alvoroço que se espalhava pelos apertados corredores que ligavam os pequenos calabouços.
Instalei a minha mesa de trabalho sob a minúscula janelinha numa das celas e passei a redigir narrativas curtas, ofício ao qual me dedicara tantos anos antes de chegar na cidade sobre o charco. Durante as estórias que escrevia eu ouvia um rumor nas entranhas da torre, um murmúrio intermitente que funcionava como uma música de fundo para as estórias que eu ia criando.
Havia um alarido geral e quando eu caminhava entre a multidão podia sentir o seu ingênuo furor emanando dos seus corpos como miasmas que esfumaçam através de uma massa estagnada.
Certos procedimentos de narrativas curtas precisam ser esclarecidos; como eu disse, quando cheguei todos haviam se esquecido dos primórdios da cidade, entretanto um senhor de idade muito avançada se lembrava. Ele me contou. Eu vinha pela trama dos corredores, O velho estava recostado no batente da sua porta e calmamente me via passar. Um sussurro dentro de mim me disse que ele tinha algo a me dizer.
“Construíram a cidade sobre o charco”, ele foi dizendo, agora com uma inesperada desenvoltura. Eu fui ouvindo, incrédulo, os acontecimentos que se sucederam a aparição do rosto. No outro dia, debruçado sobre a minha mesa de trabalho, olhei através da janela estupefato; o sol batendo de chapa na superfície das torres levemente inclinadas fazia vibrar alguma coisa fincada no fundo do charco; a cidade parecia prestes a ruir.
A despeito das minhas evidentes conjecturas o otimismo era geral, ninguém se dava conta do trágico fim e todos se dedicavam, incansavelmente, aos seus imprescindíveis afazeres.
Para mim tudo não passava de uma ridícula encenação; nos corredores eu andava, contrito, entre as máscaras asquerosas e estúpidas cheias de sarcasmos dirigidos a mim. De alguma maneira, eu não podia imaginar como isto se dava, as minhas ideias pareciam incomodar as autoridades da Cidade Sobre o Charco mesmo que ninguém jamais tenha lido sequer uma linha do que eu tinha escrito para ter, nem que fosse, uma vaga noção das coisas que eu pensava, vasculharam o meu escritório de trabalho e confiscaram os meus apetrechos de escrita bem como os calhamaços preenchidos numa letra miúda que abarrotavam uma gaveta da cômoda.
“Bem, devo ser o primeiro autor inédito a ser censurado pela cúpula do poder de algum lugar”, eu pensei um pouco envaidecido, “o primeiro que sem ter emitido nenhuma opinião sobre qualquer assunto, ao contrário exerceu uma incansável e monótona autorreflexão com palavras meticulosamente escritas, se vê impedido de exercer o seu silencioso ofício de escriba maldito”, eu pensei.
Sem o meu aparato de autor marginal disponível para os meus momentos de reflexão passei a vagar sem rumo pelos corredores da insustentável construção; só assim pude exercitar a minha verve de voraz observador de máscaras e esgares e me tornar o exímio e profundo psicólogo que sou.
O meu olhar insistentemente dirigido ao nada, depois de exaurir tudo que um rosto pudesse esconder, parecia causar algum incômodo.
Num dia bateram à minha porta e me proibiram de vadiar sem rumo pelo emaranhado dos vãos; o cubículo que eu habitava, com seus poucos metros, passou a ser o único lugar onde eu podia estar.
Mas não há repressão absoluta, algo daquele que fora escorraçado sempre volta a mente daqueles que oprimem; ao passarem por minha porta os citadinos sentiam um leve rumor de denúncia contra a insensatez e a demência. E um certo desconforto de desconhecerem, no final das contas, a essência e o sentido daquilo que eu escrevia, (A notícia de que haviam apreendido os calhamaços contendo as minhas narrativas havia se espalhado) atingiu algumas mentes que, de alguma forma, guardavam certas sensibilidades para que isto ocorresse.
Num dia ouvi um baque seco na folha da porta. Fui abrir e um homem muito magro e alto escorregou com agilidade para dentro do quarto como se temesse ser visto entrando nos meus aposentos. Sentou-se a escrivaninha, agora inativa, retirou um pequeno caderno do casaco e pôs-se a escrever. Guardou o pequeno calhamaço e escapou pela porta se misturando a multidão de lunáticos que caminhava pelos corredores àquela hora.
Passaram-se alguns dias e algo semelhante aconteceu. Entraram dois homens tão arredios e receosos quanto o primeiro. Se sentaram sob a janela, contemplaram a linha do horizonte por alguns minutos, depois, os olhos atônitos postos em mim: “queremos saber o que houve”, eles perguntaram, “a cidade foi construída sobre o charco”, eu disse, “está tudo prestes a ruir”, eu disse, quase podendo sentir a vibração que vinha do fundo do pântano percorrer as linhas dos seus rostos incrédulos.
Depois disso não recebi nenhuma outra visita. Foram muitos meses de clausura aos quais dediquei-me à arte de pensar sem exprimir em palavras escritas o que pensava.
Na semana passada, sem ter sido informado dos motivos, fui liberado para me locomover livremente através da cidade sobre o charco sem ser importunado. Caminhar entre a turba desvendando o que há por trás das máscaras felizes tão bem ajustadas sobre os seus rostos profundamente tristes.
Passei muitos dias esquecido da aparição do rosto sobre o pântano e da precária construção da cidade; envolvido nessa minha arte de decifrar esgares.
Ontem quando vinha pelo corredor senti um grande estrondo e um abalo sob os meus pés; a cidade estava ruindo.