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A menina e o louco

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 20 de nov. de 2024
  • 3 min de leitura



Ele diz coisas muito estranhas. Ela veio pensando que seria impossível compreendê-lo, mas já tinha se comprometido consigo mesma, e jamais, em toda a sua pequena existência, desistira de algum compromisso feito; faria tudo para ajudá-lo. “Amanhã tenho que voltar e me esforçar mais. Deve haver um resto de sentido no que ele diz”, ela pensou.

Pedalou mais forte. Depois da curva a estrada íngreme subia o morro e a cidade começava a desaparecer entre as nuvens lá embaixo. Perto da cachoeira levantou-se do selim para tomar impulso, já que naquele ponto da trilha uma camada de areia fina e avermelhada encobria a terra batida fazendo com que os pneus afundassem no pó, deixando a bicicleta muito pesada como se alguém, repentinamente, tivesse saltado na garupa.

A estrada serpeava o morro das orquídeas, e a sua única serventia era extraviar os viajantes desavisados na direção da casa azul.

Ninguém mais se lembra quem fora o construtor da casa e nem porque a abandonara; se alguém subiu lá um dia, mal poderia dizer quantas janelas compõem a fachada da casa azul. Quanto a estrada todos são unânimes em dizer simplesmente: “essa é a estrada que leva a lugar nenhum.”

Naquele ano o vilarejo se surpreendeu com a chegada da garota da bicicleta e com o fato dela ter se instalado na casa azul no alto do Morro das Orquídeas. Quando ela passou a visitar o louco no seu chalé do outro lado da ponte os níveis de estranhamento e incompreensão de que é capaz um pequeno povoado chegou ao seu limite máximo.

A menina vinha pensando enquanto pedalava. Finalmente contornou a última curva lá encima, encostou a bicicleta no tronco da árvore raquítica e subiu os degraus da escada. Entrou na sala e abriu as janelas. Ficou contemplando as nuvens que deslizavam como um rio tortuoso que desce pra um lugar desconhecido. “Porque ninguém pensou em falar com ele, tentar saber das suas razões?”, ela pensou, enquanto via através da janela o último fiapo de nuvem desaparecer por trás do morro e o sol começar a se esconder na linha vermelha que riscava o horizonte.

Realmente ninguém tivera essa ideia. O louco morava do outro lado do rio que passava na borda da cidade. O rio tinha as águas turvas e uma ponte estreita ligava um lado ao outro. Ninguém jamais atravessou a ponte para ir ao encontro do louco do outro lado para saber o que ele pensava, ver a forma do seu rosto, a maneira peculiar dos seus gestos, ouvir a melodia da sua voz... Ele, por orgulho e desprezo, mantinha-se do seu lado do rio contemplando as águas que iam arrastando as horas e os dias. Nas noites de lua cheia a cidade ouvia os seus gritos de tormento e fúria.

“Agora é diferente, essa garota indo e vindo na sua bicicleta, atravessando a ponte sem se importar com a opinião de ninguém…”, diziam debaixo da tamarineira lo largo da igreja.

O tempo ia devorando as horas e as vidas mergulhadas na estupidez, nos dias cheios de tédio; um rumor amargo escorria entre os telheiros.


Numa tarde um carro entrou na vila. Estacionou debaixo da tamarineira no meio do largo. Quem espiava da janela viu descerem dois homens vestindo ternos escuros. Os homens olhavam em volta como se esperassem que alguém viesse recebê-los. A princípio ninguém se arriscou a se aproximar, mas aos poucos um círculo de curiosos foi se formando em volta dos forasteiros.


Dentro do carro o gordo de bigodes ruivos, ao volante, desviou os olhos da estrada por alguns segundos. Encarou o magrelo de nariz adunco que viajava do lado: “e então?”, perguntou.

O outro hesitou por um momento enquanto procurava as palavras. Olhou no retrovisor que focava o morro das orquídeas rodeado por nuvens turbulentas se desmanchando lá atraz.

“Um caso clássico de alucinação coletiva”, disse o magrelo mirando o chofer de bigode ruivo, “imaginaram o louco, a menina da bicicleta, e talvez; dois forasteiros de vestes escuras que chegaram numa tarde”, concluiu.

O carro fez uma curva imperceptível e como que mergulhou suavemente num abismo de névoa. O magrelo de nariz adunco olhou novamente no espelho do automóvel; a casa azul pairava sobre a estrada. Nuvens densas com formas inusitadas entravam pelas janelas e deslizavam do outro lado no paredão da encosta. O morro das orquídeas parecia flutuar como um grande balão esmaecido sobre o céu azul.

 
 
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