O ator
- Daniel S. Santos

- 8 de jan.
- 3 min de leitura
Atualizado: 9 de jan.
São dois atores. Um idiota, no canto esquerdo, observa os movimentos de um suposto chofer de táxi andando pela calçada imaginária do outro lado do tablado.
O chofer vai até o final do percurso, depois retorna pisando nos mesmos pontos onde havia pisado. Nota-se os passos vacilantes de quem não sabe direito pra onde ir, de quem passa o dia sentado numa cabine de automóvel transportando passageiros no centro da cidade.
Sem que nada aparente tenha interferido nas suas atitudes abandona a trilha delimitada no chão para que ele a percorra e vem na minha direção. Sou o único expectador sentado na primeira fila.
A cena se repete algumas vezes sem que eu possa notar a mínima diferença entre uma e outra.
“Trata-se de um ensaio ou já estamos na apresentação da peça?”, eu perguntei a mim mesmo e fiquei aguardando a resposta como se houvesse dentro de mim um outro eu especialista em responder as minhas próprias perguntas.
Por vias das dúvidas levantei-me e procurei a porta de saída.
Lá fora a rua vazia. Na calçada comecei a dar uns passos confusos de quem passara muito tempo sentado esperando que algo acontecesse numa encenação estúpida ou aguardasse resposta de um eu imaginário que não compreende nada de espetáculos de encenação. Olhei de um lado pro outro sem distinguir a direção que deveria tomar. As ruas em torno do hotelzinho em que eu havia me hospedado ainda não estavam devidamente gravadas em minha mente.
Arrisquei o lado da via que desemboca numa pracinha desolada, contornei-a, desci por uma rua estreita e finalmente enxerguei o hotelzinho no final da calçada do lado direito. Ao subir os degraus da portaria o recepcionista me entregou um bilhete que alguém havia deixado. Enfiei o papel dobrado no bolso da calça e entrei para o meu quarto.
Antes de me sentar no sofazinho esculhambado no canto da parede retirei o papel do bolso.
No bilhete estava escrito:
“Há três personagens na cena.
Estão parados um diante do outro em cima de um retângulo iluminado por uma luz baça.
O personagem do lado esquerdo da cena visto de perfil exibe um nariz adunco e o ventre protuberante de quem passara a vida sentado atrás de uma mesa rodeado de papéis.
O do personagem outro lado olha para um ponto fixo dentro do vazio.
O espectador da primeira fila levanta-se e sai da sala de teatro.”
Enfiei o papel no bolso novamente, descansei por alguns minutos e depois saí pelas ruas da cidadezinha vazia. Um pássaro inepto cantava em alguma esquina. Uma lua bojuda despejava uma luz branca sobre o colorido das telhas.
Eu ia pensando no bilhete e imaginando como seria a encenação do outro dia, caminhava lentamente enquanto procurava algum lugar para jantar.
Fui o primeiro a chegar e sentei-me na primeira fila. O palco, iluminado por uma luzinha vermelha estava vazio.
Entrou o primeiro ator. Parecia com o chofer de táxi da noite anterior, mas agora tinha os passos firmes e sabia exatamente qual direção tomar dentro do palco.
Se aproximou da primeira fila. Eu era o único expectador na primeira fila.
Tive a impressão de tê-lo ouvido perfeitamente embora nenhuma palavra tenha saído dos seus lábios:
“Pessoas como você têm o dom da solidão, os nervos com uma enorme capacidade de suportar a pressão de se estar só; como uma corda de violino distendida até o limite máximo sem se arrebentar.”
Saí do teatro e fui caminhando. As ruas do hotelzinho agora estavam perfeitamente gravadas em minha cabeça. Subi os degraus da portaria. O recepcionista me entregou outro bilhete, “Esse porteiro é um exímio entregador de bilhetes”, eu pensei. Abri a porta e fiquei andando pelo quarto.
Uma luz baça subia da ribalta e iluminava o meu rosto. Os meus passos pareciam os passos atabalhoados de quem passara o dia todo sentado numa cabine de automóvel transportando passageiros. Me aproximei da borda do palco; havia um único expectador sentado na primeira fila.
Estiquei o pescoço e olhei bem dentro do olho dele. “De ator para ator”, eu pensei, enquanto falava pra ele algumas frases inauditas. Reparei bem no rosto dele depois que acabei de falar; ele parecia alguém capaz de suportar absurdas doses de solidão.
Levantou-se, saiu pela porta do teatrinho e foi caminhando pela calçada vazia. Parecia atônito e não distinguia muito bem a rua que pudesse levá-lo de volta ao hotelzinho barato em que se hospedara.