O deus dos estropiados
- Daniel S. Santos

- 6 de nov. de 2024
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Depois de muito tempo voltei à Serra Negra. Cheguei num fim de tarde. As pessoas caminhavam nas calçadas com roupas coloridas em formatos extravagantes e risíveis. As casas evidenciavam a necessidade de reformas urgentes. A decadência se revelava em todos os detalhes; nas cercas escangalhadas de um jardim, num chafariz desativado, no matagal que invadia os pátios e quintais.
Busquei na memória a cidade que eu trazia dentro de mim; esforço inútil e vão; Serra Negra estava irreconhecível.
Ao passar pela calçada depois da rua da igreja uma senhora contemplando o seu desolado jardim me sorriu com o rosto encarquilhado. Julguei reconhecer nela a minha antiga professora. Ela Caminhou na direção do portãozinho enferrujado e ao abri-lo um som áspero e estridente preencheu o vazio da tarde; vibraram as pétalas de um vermelho intenso dependuradas nos talos.
A senhora se aproximou e se postou diante de mim como se fosse premente impedir minha passagem para me dizer alguma coisa. Depois de mirar com atenção o meu rosto como se buscasse numa pintura desbotada pelo tempo os resquícios de paisagens distantes proferiu um discurso desconexo cujo significado me escapava.
Alguns jovens, surgiram inesperadamente e se aproximaram com alguma urgência hostil. Falavam ao mesmo tempo, e misturado ao discurso da professora, o que eles diziam me parecia ainda mais inverossímil. No meio de um turbilhão de disparates uma frase me pareceu fazer algum sentido; “Sabe quem governa a cidade agora?”, julguei que a pergunta fosse dirigida a mim embora a minha ignorância sobre os assuntos de Serra Negra naquele instante fosse evidente.
Não sabia o que responder. Imaginei que se dissesse alguma coisa as minhas palavras também se perderiam no vórtice das vozes e seriam encobertas por camadas espessas de silêncio.
Uma jovem de cabelos azuis me puxou pela mão enquanto os outros nos seguiam. Entramos por um beco que mal cabia duas pessoas andando uma ao lado da outra. As paredes ásperas, camadas sobrepostas de argamassa, restolhos aderidos a uma arquitetura caótica encobriam esplendidos portais entalhados em arabescos, magníficas fontes esculpidas na pedra, portas que levariam a esplêndidos salões; havia uma cidade sob os escombros.
A trilha se alargava aos poucos até chegar num espaço amplo e aberto onde as casas pareciam ter sido arrancadas de seus alicerces de forma brusca e repentina.
Havia lixo por toda parte. Tive que esfregar bem os olhos e fixá-los com atenção para aceitar que sobre os detritos descansavam algumas dezenas de mendigos profundamente alheios a tudo o que se passava em volta.
A jovem de cabelos azuis dependurou-se no meu pescoço e, apontando para os indigentes, cochichou no meu ouvido; “Esses são os nossos governantes agora.” Os outros, já prevendo o que ela me dissera em segredo, me lançaram olhares de cumplicidade. “Se eu vivesse entre esses homens eu tomaria o poder, seria o manda chuva em Serra Negra”, eu pensei. Todos os que me acompanhavam, como se houvessem feito meticulosos ensaios musicais, responderam em coro: “Você se engana, eles são astutos como o diabo”. “Ah, então vocês praticam a telepatia”, eu disse fingindo indignação; me olharam com um riso cínico estampado na boca, o que confirmava as minhas suspeitas sobre a telepatia e esboçava uma certa conivência entre nós.
“Quero falar com o chefe”, falei com a voz alterada enquanto caminhava na direção dos maltrapilhos.
Os mendigos continuaram quietos sem mostrar o menor interesse no que eu dizia. “Esta é a primeira qualidade de um governante”, eu pensei.
Os telepatas, admirados com a minha sagacidade política, trocaram olhares entre si como que aprovando a minha interferência nos assuntos de Serra Negra; como se eu fora um salvador que chegara para redimir a cidade daquela turba de canalhas.
Finalmente levantou-se um baixinho com o rosto lambuzado de carvão. “Sou eu”, disse, enquanto caminhava pro meu lado mordiscando um pão encarvoado; a expressão autoritária e arrogante. Ao se aproximar percebi que era ainda mais mirrado e repulsivo, embora não parecesse que isto amenizasse a sua prepotência.
Eu achei inaceitável que aqueles “senhores” fossem os atuais líderes de Serra Negra; o topo da pirâmide, como se diz.
“Eu sou o chefe aqui”, repetiu o baixinho com o semblante de um lunático. “Estou no meu palácio cercado por auxiliares e súditos; Imagino que você seja o mensageiro que enviaram”, completou. Eu não sabia de mensageiro nenhum, mas resolvi aproveitar a chance de me misturar àquela turba e expulsá-la de Serra Negra na primeira oportunidade que aparecesse.
“Sim, sou o mensageiro”, respondi convicto. “Sendo assim vou lhe mostrar o palácio”, o chefe respondeu. Depois continuou; “Basta subir nesse caramanchão e dar uma olhada em volta, o que a sua visão abarcar é o palácio. Não temos paredes, por isso, o vento que vem das montanhas varre o chão e joga poeira em nossos olhos, por precaução os trazemos sempre fechados, como deve ter notado.” “Outra grande qualidade de um governante”, eu pensei. “O que achou do palácio? Isto aqui é só o começo”, ele concluiu cada vez mais interessado no que ia me dizendo.
Eu observava tudo com atenção, demonstrando um respeito dissimulado. A jovem de cabelos azuis, a professora, e os outros, mais atrás, observavam a cena estupefatos. O baixinho me pegou pelo braço e me arrastou por alguns metros, apontou o dedo numa direção e me confidenciou; “Veja aquele homem com ar compenetrado, que parece alheio e distante, um ar meio aparvalhado; não se engane; é um grande vidente. Por isso o escolhemos para ser o nosso guia”. Parou por um instante que me pareceu infinito, depois, visivelmente emocionado continuou; “Ele nos revelou a nossa grandiosa missão”, pude ouvir a sua voz embargada dizer. Olhou-me mais profundamente agora, a face absurdamente transtornada, a voz, que já desaparecia sob a avalanche de emoções que o consumiam, concluiu;
´´O deus dos estropiados nos escolheu´´