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Psicanalista de cavalos

  • Foto do escritor: Daniel S. Santos
    Daniel S. Santos
  • 23 de out. de 2024
  • 3 min de leitura

Psicanalista de cavalos





Sentei-me para escrever. Espero que a minha intuição venha em meu auxílio. Organizei os papéis sobre a pequena mesa que mandei colocar na sacada e fiquei contemplando a praça sob o sol da tarde. As folhas das árvores ondulavam levemente com a brisa que corria por entre os sobrados. “É preciso um outro personagem além deste que escreve; o narrador não é suficientemente persuasivo para atuar como protagonista de um conto”, eu pensei, tentando iniciar a primeira frase que fazia malabarismos no alto da minha mente quase saltando para a folha do caderno. Talvez surja alguém caminhando pela calçada do beco, uma mulher conferindo as malas que ainda estão abertas sobre o assoalho ou até mesmo um outro autor na parte escura do quarto absorvido em seu ofício; imaginar personagens que resistem em participar do relato.

Uma narrativa precisa de ação. Então vêm a seguir algumas cenas impactantes:

Depositei a caneta sobre as folhas, levantei-me e fui até o guarda-roupa apanhar uma jaqueta. Tranquei a porta da sala e saí. Caminhei pelas ruas vazias da pequena cidade. Um cheiro forte de flores murchas recendia no ar. As janelas das casas estavam fechadas e não havia nenhum indício de que pudessem abrir e revelar o que havia dentro, apenas a lua derramava uma luz misteriosa sobre os telhados.

Finalmente, na última casa perto da ponte, abriu-se uma janela e surgiu uma cabeça enorme como a cabeça de um cavalo. Me olhou com evidente desprezo.

Não me importa saber o que faz um cavalo no interior de uma residência; se se senta no sofá da sala e vê televisão, folheia revistas, lê Karl Marx, ou toma chá com sua consorte; o cavalo tem uma psicologia intrincada e eu não me ocuparia em desvendá-la gastando as minhas parcas habilidades de psicanalista de quadrúpedes; mas que ele abra a janela, pouse as suas patas sobre o parapeito e me olhe passar com evidente desprezo é do meu interesse.

Me aproximei indignado. Houve um impasse, alguns segundos que me pareceram uma eternidade escorreram como um rio de cólera entre eu e meu adversário. Eu estava a dois passos dele, as duas orelhas, equinas, dois cones girando lentamente, filtravam no ar cada palavra que eu dizia; os dois olhos negros brilhando, cada um num dos lados da cara como se se tratasse de uma parte colada a outra ou o reflexo da metade de uma fronte grudada no vidro de um espelho. Eu dei mais um passo e já sentia o bafo do meu oponente em meu rosto como uma bofetada.

De repente algo mudou dentro de mim, a fúria que havia me dominado foi se esvaindo. Fui dando os passos que eu dera para a frente com tanta determinação, agora em slow motion e em sentido oposto e esboçados em movimentos meio sem graças de quem decide desertar de uma contenda. “Acho melhor não entrar em desavenças com um cavalo. Além do quê, ele tem uma psicologia intrincada”, eu pensei, dando o último passo já meio bambo na beira da calçada.

Virei-me e continuei descendo a rua.

Atravessei a ponte, retornei pelo outro lado pela pinguela do morro e cheguei em casa. Entrei pela porta lateral e subi a escada. Na sacada um vento repentino varreu os papéis da pequena mesa, espalhando-os pelo chão. Ao juntá-los, notei que eu não havia escrito uma linha sequer, e que era preciso começar.

Peguei a caneta e automaticamente o título do conto veio à minha mente:

PSICANALISTA DE CAVALOS

 
 
Guêthie, o anjo exterminador

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